Os efeitos patrimoniais do casamento são regidos por três princípios, sendo eles: a) o Princípio da Variedade, que se manifesta por meio da previsão de mais de um tipo de regime de bens em nosso ordenamento jurídico; b) o Princípio da Liberdade de Pacto, que garante a customização do regime de bens escolhido conforme a realidade fática de cada casamento e, por fim; c) o Princípio da Mutabilidade, que permite a alteração do regime de bens do casamento, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros (art. 1.639, § 2°, Código Civil[1]).
Importante mencionar, ainda, que a alteração do regime de bens do casamento possui efeito ex nunc, de modo a garantir a observância do direito patrimonial de terceiros que, eventualmente, possam ser prejudicados com a referida alteração.
Considerando, então, que o regime de comunhão parcial de bens é regra em nosso ordenamento jurídico e que pode ser do interesse dos nubentes, eventualmente, alterarem o referido regime para a separação de bens, o presente artigo visa discorrer acerca da repercussão tributária dessa alteração, especialmente nas situações em que a partilha de tais bens ocorre de maneira desproporcional.
Sobre este ponto, importante frisar a existência de entendimento jurisprudencial[2] acerca da possibilidade de haver a partilha dos bens tão somente na ocasião da dissolução do casamento, não sendo tal providência necessária – ou, por assim dizer, obrigatória – imediatamente após a alteração do regime de bens.
Todavia, considerando que o presente estudo trata da repercussão tributária quando da ocasião da efetiva partilha, considera-se, aqui, somente as situações em que a partilha de bens ocorre em ato contínuo à alteração do regime de bens.
Pois bem. Em primeiro lugar, há de se destacar que o tributo correspondente à referida transação é o ITCMD, uma vez que, conforme determina a súmula 328 do Supremo Tribunal Federal[3], também estão sujeitos a incidência de tal tributo os bens que são objetos de doações intervivos.
Não há dúvidas que a partilha desproporcional dos bens pode ser considerada uma doação intervivos, uma vez que, uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra, sem qualquer contraprestação pecuniária, nos mesmos moldes do art. 538 do Código Civil[4].
Ademais, há de se destacar que a normatização específica do ITCMD fica reservada, exclusivamente, ao poder legiferante de cada Estado e do Distrito Federal, em atenção à ordenação constitucional.
Deste modo, analisa-se a situação concreta à luz da Resolução SEFA n° 5, de 04/01/2018, referente ao Estado do Paraná, exclusivamente.
Nesta senda, o art. 1°, § 1°, III, da Resolução SEFA n° 5, determina que estão sujeitos à incidência do ITCMD, “os bens que, na divisão do patrimônio comum, na partilha ou na adjudicação, forem atribuídos a um dos cônjuges, a um dos conviventes, ou a qualquer herdeiro, acima de sua respectiva meação ou quinhão”.
De pronto, verifica-se que a referida tributação incide tão somente sobre a parte excedente à quinhão do cônjuge que veio a se beneficiar com os bens em razão do excesso de meação que lhe foi atribuído.
Neste cenário o cônjuge beneficiado com o excesso assume a obrigação de recolher o referido tributo – uma vez que se assemelha à figura de donatário (art. 10, II, Resolução SEFA n° 5[5]) – de forma solidária com o outro cônjuge (cf. art. 11, IV, da mesma resolução[6]).
É dizer, ambos responderão pelo pagamento do ITCMD incidente na espécie.
Neste contexto, surgem dois importantes questionamentos a serem elucidados: 1) considerando que a partilha desproporcional de bens gera uma obrigação tributária para com o fisco, este possuiria o interesse de se insurgir sobre a alteração do regime de bens do casamento? 2) caso o fisco efetivamente possua as condições necessárias para se insurgir acerca da alteração do regime de bens, qual seria o prazo prescricional para tanto?
Inicialmente, acredita-se não haverem motivos para que o fisco se insurja, necessariamente, sobre a alteração do regime de bens do casamento. Isso porque o seu “direito” de arrecadar o imposto daí decorrente surge tão somente após a alteração do regime. Sendo assim, não havendo a alteração, não há qualquer interesse do ente fazendário a ser resguardado.
Entende-se, então, que cabe ao fisco tão somente tomar as medidas necessárias ao recebimento do imposto que lhe diz respeito, correspondente a parte doada que exceda a meação.
Havendo inércia das partes em relação ao pagamento do tributo incidente, deve o fisco notifica-las, por meio de Auto de Infração, para que procedam a regularização da situação tributária dos bens que excederam ao quinhão a que tinham direito.
Quanto ao prazo prescricional, há de se defender que deverá prevalecer o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, que fixou o prazo prescricional de 5 (cinco) anos para que o fisco exija o crédito tributário.
Esta contagem, diga-se de passagem, inicia-se com a constituição definitiva do crédito tributário que, na hipótese, flui com a efetiva partilha de bens, ultimada após a autorização judicial autorizando a alteração do regime de bens do casamento.
De todo modo, caso o fisco entenda pela necessidade de se insurgir, exclusivamente, contra a alteração do regime de bens, entende-se que se aplicaria o prazo prescricional de 10 (dez) anos (regra geral prevista no art. 205 do Código Civil).
Escrito por Paulo Henrique Piccione Cordeiro (OAB/PR 102.997) e Laura Cancela da Cruz
[1] Art. 1.639. É lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver.
§1º° O regime de bens entre os cônjuges começa a vigorar desde a data do casamento.
§2° É admissível alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros.
[2] DIREITO DE FAMÍLIA. RECURSO ESPECIAL. ALTERAÇÃO DE REGIME DE BENS DO CASAMENTO DE COMUNHÃO PARCIAL PARA SEPARAÇÃO TOTAL. OMISSÃO DO ACÓRDÃO RECORRIDO. INEXISTÊNCIA. PARTILHA DOS BENS ADQUIRIDOS NO REGIME ANTERIOR. POSSIBILIDADE. RECURSO PROVIDO. (…) 3. No caso, diante de manifestação expressa dos cônjuges, não há óbice legal que os impeça de partilhar os bens adquiridos no regime anterior, de comunhão parcial, na hipótese de mudança para separação total, desde que não acarrete prejuízo para eles próprios e resguardado o direito de terceiros. Reconhecimento da eficácia ex nunc da alteração do regime de bens que não se mostra incompatível com essa solução. Recurso especial provido. (REsp 1533179/RS, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 08/09/2015, DJe 23/09/2015)
[3] Súmula 328. É legítima a incidência do impôsto de transmissão inter vivos sôbre a doação de imóvel.
[4] Art. 538. Considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra.
[5] Art. 10. O contribuinte do imposto é (art. 14 da Lei nº 18.573/2015):
II – o donatário, nas transmissões por doação;
[6] Art. 11. São solidariamente responsáveis pelo imposto devido pelo contribuinte (art. 16 da Lei n. 18.573/2015):
IV – o donatário, quando não-contribuinte, o doador e o cedente, em relação aos bens ou aos direitos recebidos, doados ou cedidos;