Sem fugir ao tema extremamente atual da pandemia provocada pelo coronavírus (Covid-19) e seus reflexos multifacetários, faremos breve análise sobre suas implicações nos contratos de representação comercial, mormente na impossibilidade de cumprimento das metas estipuladas e o justo motivo para rescisão contratual.
A atividade de representação comercial encontra disciplina na Lei nº 4.886, de 9 de dezembro de 1965, com alterações pela Lei nº 8.420/1992 e Lei nº 12.246/2010. Portanto, cuida-se de contrato típico e a legislação disciplinou de forma específica e cautelosa os direitos e obrigações das partes, com viés protetivo ao representante comercial por considera-lo parte vulnerável da relação contratual ante sua essência de criador, consolidador ou ampliador do mercado para outrem; a legislação, dessa forma, estabeleceu regras de proteção contra a extinção contratual imotivada, perda das zonas de atuação e retribuição pelo exercício da representação comercial.
Regra geral, o contrato de representação comercial tem como característica pujante a prestação de serviços pelo representante por meio de uma organização própria e independente, sem intervenção externa do representado, de modo a destinar o resultado econômico da atividade ao seu próprio proveito. Decorre, portanto, a assunção dos riscos da atividade econômica pelo representante, e com isso a comissão auferida está ligada a dependência do resultado útil de sua atividade.
Oportuno anotar que a ingerência externa conflita com a necessidade de absoluta autonomia peculiar a este tipo contratual, porquanto o representante comercial pressupõe independência de itinerário nas visitas aos clientes e na utilização de seu tempo; concentração consigo do ônus de sua atividade ou organização; obrigação de manter-se regularmente cadastrado perante o Conselho Regional dos Representantes Comerciais e promover o arquivamento dos atos constitutivos perante a Junta Comercial.
Afora isso, o contrato de representação comercial deverá seguir os requisitos exigidos pelo artigo 27 da Lei nº 4.886/1965, não havendo limites ou proibição, desde que dentro da legalidade, para o acréscimo de direitos e deveres não previstos na norma, dentro os quais, e que julgo de maior relevância em exercício particular de eleição, a fixação de metas de vendas para atingimento pelo representante.
A problemática instala-se nesse quesito, pois, em pleno estado de calamidade pública reconhecida, com efeitos até o dia 31 de dezembro de 2020, com medidas restritivas para enfrentamento da emergência de saúde pública reconhecidas e definidas pela Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, imposição de restrição à circulação de pessoas e ao trânsito de veículos em rodovias, é que nascem os questionamentos se as exigências contratuais afetas ao atingimento de metas, abertura de novos mercados, visitação de clientes e demais tarefas inerentes ao próprio objeto contratual poderão permanecer.
É cediço que o contrato de representação comercial ajustado por prazo indeterminado e que vigora há mais de seis meses poderá, sem justo motivo, ser rescindido (denunciado) por qualquer das partes, caso que a parte denunciante ficará obrigada à concessão de pré-aviso a outra, salvo outra garantia prevista no contrato, com antecedência mínima de trinta dias, ou ao pagamento de importância igual a 1/3 das comissões auferidas pelo representante, nos três meses anteriores, conforme dicção do artigo 34 da Lei nº 4.886/1965.
Lado outro, a ausência de pré-aviso com o imediato rompimento do contrato de representação comercial sem o pagamento da indenização estabelecida na legislação é possível somente nos casos em que presente justo motivo para o rompimento contratual, assim fixados nos artigos 35 e 36 da Lei nº 4.886/1965; aquele traz os motivos para rescisão do contrato pelo representado; este, os motivos para rescisão do contrato pelo representante. Hipótese comum a ambos, a possibilidade de invocar força maior como estopim da ruptura contratual.
Para o Código Civil, em seu artigo 393 ao tratar do inadimplemento obrigacional, deixa certo que “o devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado”, estabelecendo o parágrafo único deste artigo que “o caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir”. Pouco provável, mas não impossível é a hipótese de previsão contratual expressa e específica a esse respeito.
Salutar revelar que o artigo 35, alínea “c”, da Lei nº 4.886/1965, elenca a “falta de cumprimento de quaisquer obrigações inerentes ao contrato de representação comercial” como justo motivo do representado para reconhecer a rescisão contratual face ao representante.
E como outrora demonstrado, o contrato de representação poderá prever várias obrigações, tais como, atingimento de metas, e estas, se deliberada e sucessivamente descumpridas, serão consideradas pelo representado como inadimplemento das obrigações contratuais, fato, em regra, de incontroversa consequência rescisória ao contrato.
Disso, como se faz possível conciliar a aparente ambiguidade da norma ao expor o inadimplemento contratual e a força maior como motivos justos a rescisão contratual?
Respeitado entendimento divergente, não há fórmula objetiva para a solução e a análise deverá ser casuística. No peculiar momento pelo qual a humanidade atravessa, o núcleo a ser pesquisado cinge-se ao fato da possibilidade de cumprimento contratual pleno pelas partes, isto é, analisar frente ao atual cenário a possibilidade de a parte cumprir com sua obrigação contratual de forma integral ou fracionária apta a manter a relação contratual obrigacional.
Não aparenta a melhor prática manter, de forma açodada, a exigência de cumprimento de metas, abertura de novos clientes etc. em zona ou local que sofre os impactos diretos do isolamento social, da quarentena e do fechamento do comércio, porquanto, o inadimplemento dessas obrigações pelo representante, a primeiro toque, não seria injustificado, o que de plano afastaria incidência de penalização contratual.
No mesmo sentido, a invocação de força maior como justo motivo para a quebra contratual unilateral e sem o pagamento de indenização, merece acurada análise ao eventual caso posto em debate.
Isso porque, se o atual estado de calamidade pública vivenciado pelo país decorrente do Covid-19 ocasionar para a parte, representado ou representante, sua bancarrota ou a absoluta solução de continuidade de sua atividade econômica, a força maior poderá ser invocada por aquela parte que sofrer os efeitos diretos, mormente porque as consequências das medidas restritivas adotadas pelos órgãos responsáveis não poderão ser imputadas à parte, na exata medida de que os efeitos não eram possíveis evitar ou impedir (CC, art. 393, parágrafo único).
De outra análise, caso as medidas não tragam encerramento das atividades, mas mera redução no fluxo de caixa, não estará configurada a força maior como causa justificada e exigível para o encerramento unilateral do contrato, como, aliás, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça.
Necessário alertar que a empresa representada não pode contribuir para a redução do fluxo de caixa do representante, por exemplo, retirando zonas de atuação, produtos, reduzindo comissionamento, dentre outros, pois se assim o fizer estará ela a praticar ato lesivo, autorizando a rescisão contratual por justo motivo imputável à representada.
Por fim, o momento requer serenidade na tomada de decisões e, acima de tudo, diálogo entre as partes; decisões açodadas e, em alguns casos, oportunistas, deverão ser evitadas. A preservação dos contratos deve ser o fim por todos almejado, pois, somente com tais conceitos se conseguirá a consolidação estratégica dos negócios encetados e a manutenção segura das atividades para sua plena retomada.