Foi recentemente sancionada a Lei n° 14.905/2024, que altera o Código Civil para dispor sobre os critérios para a aplicação de atualização monetária e juros, além de afastar o disposto no Decreto-Lei n° 22.626/1933 (Lei da Usura) de determinados negócios jurídicos.
A nova legislação uniformiza o índice de correção monetária das dívidas civis, alterando a prática anterior em que, na ausência de ajuste entre as partes, o índice era estabelecido pelo juiz, geralmente com base no índice comumente eleito pelo respectivo tribunal estadual.
Com a nova regra, caso o índice de atualização monetária não seja convencionado entre as partes ou não esteja previsto em legislação específica, será aplicada a variação do IPCA, apurado e divulgado pelo IBGE (art. 389, Código Civil).
Até o advento da Lei, o entendimento majoritário do Superior Tribunal de Justiça era pela aplicabilidade da Taxa Selic como índice de correção monetária para dívidas civis sem índice previamente convencionado. A controvérsia sobre o tema, debatida durante o julgamento dos Recursos Especiais nº 1.081.149-SP e nº 1.795.982-SP, não foi definitivamente resolvida, em razão de um pedido de vistas do Ministro Mauro Campbell. Contudo, com a promulgação da nova regra, a questão fica superada.
Outra modificação substancial trazida pela alteração legal diz respeito aos juros moratórios. Anteriormente, quando não estipulada uma taxa, aplicava-se a taxa de um por cento ao mês, estabelecida mediante a conjugação do artigo 406 do Código Civil com o §1° do art. 161 do Código Tributário Nacional. Com a nova lei, na falta de convenção expressa, os juros serão determinados pela taxa legal, que corresponderá à Taxa Selic.
Além disso, caso a Taxa Selic apresente resultado negativo, este será considerado igual a 0 (zero) para efeito de cálculo dos juros no período de referência.
Para maior clareza, apresenta-se um quadro comparativo dos dispositivos alterados:
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A uniformização do índice de correção monetária é positiva, pois garante tratamento igualitário aos devedores em âmbito nacional, trazendo previsibilidade financeira em questões judiciais e maior segurança jurídica. Além disso, poderá evitar prolongadas disputas em situações onde as partes não tenham determinado um índice de correção específico, contribuindo com o Princípio da Razoável Duração do Processo.
Contudo, associar os juros moratórios legais à Taxa Selic, que pode ser redefinida pelo Comitê de Política Monetária (Copom) a cada quarenta e cinco dias, poderá ser desafiador, dificultando o cálculo de dívidas inadimplidas por longos períodos e ameaçando a segurança jurídica tanto do devedor quanto do credor, dada a volatilidade da taxa em comparação com a anterior, que era fixa.
De toda forma, o art. 4º da Lei 14.905/2024 determina que o Banco Central disponibilize ao público uma calculadora online que perminta a simulação da aplicação da taxa de juros legais em situações financeiras cotidianas, o que poderá mitigar esses impactos negativos, caso a ferramenta seja eficaz.
Entretanto, a alteração mais preocupante diz respeito ao art. 3° da Lei 14.905/2024, que afasta a aplicabilidade da Lei da Usura, responsável por impor limitações aos juros contratuais, em algumas hipóteses específicas. Confira-se a redação do dispositivo:
Art. 3 Não se aplica o disposto no Decreto nº 22.626, de 7 de abril de 1933, às obrigações:
I – contratadas entre pessoas jurídicas;
II – representadas por títulos de crédito ou valores mobiliários;
III – contraídas perante:
a) instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil;
b) fundos ou clubes de investimento;
c) sociedades de arrendamento mercantil e empresas simples de crédito;
d) organizações da sociedade civil de interesse público de que trata a Lei nº 9.790, de 23 de março de 1999, que se dedicam à concessão de crédito; ou
IV – realizadas nos mercados financeiro, de capitais ou de valores mobiliários.
Embora a autonomia na fixação de juros possa ser considerada válida em relações equilibradas, como entre duas pessoas jurídicas de portes semelhantes (conhecimento técnico e financeiro), servindo como um meio eficaz para prevenir a inadimplência, o problema surge quando os juros não são regulamentados em contextos onde uma das partes é hipossuficiente, como nas dívidas contraídas perante instituições bancárias, caracterizadas como relações de consumo.
Sobre o tema, é imperativo destacar que o Superior Tribunal de Justiça já consolidou o entendimento de que o Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras (Súmula 297/STJ), justamente em razão da vulnerabilidade do consumidor em relação a estas.
Mesmo sob os rigores da Lei da Usura, não raro observava-se o crescimento exponencial de dívidas bancárias. Autorizar que a instituição bancária fixe os juros de forma discricionária contraria as disposições do Código de Defesa do Consumidor, especialmente os dispositivos destinados à prevenção do superendividamento.
Portanto, conclui-se que as modificações introduzidas pela Lei nº 14.905/2024 podem ter efeitos positivos ao incentivar a fixação de índices de correção monetária e taxas de juros específicas nos contratos, além de prevenir prolongadas disputas quanto à escolha dos índices a serem aplicados na falta de estipulação contratual. Por outro lado, a inaplicabilidade do disposto na Lei da Usura, especialmente em contratos bancários, deverá ser objeto de especial atenção pelos Tribunais, devido ao potencial aumento do desequilíbrio nas relações de consumo e outras relações em que a parte contratante seja considerada hipossuficiente e o risco de superendividamento dos consumidores frente às instituições financeiras.