Recentemente a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) aceitou a interposição de ação de reconhecimento de paternidade afetiva concomitantemente com a biológica, mesmo existindo processo anterior, transitado em julgado, que negou o pedido para substituir na certidão de nascimento do pai socioafetivo pelo biológico, pois o vínculo socioafetivo perdurou por mais de 40 anos, devendo prevalecer[1].
No caso, os Ministros entenderam que a revogação do pedido de reconhecimento da paternidade biológica ocorreu com fundamentos diversos da nova ação, portanto distinta da anterior, sendo possível a demanda mais recente que busca a inclusão do pai biológico no registro de nascimento, sem prejuízo da filiação socioafetiva já registrada, ou seja, uma situação de multiparentalidade.
Mas o que é a multiparentalidade? E, filiação socioafetiva? Passamos a explicar melhor os conceitos, que são cada vez mais frequentes na vida das pessoas.
Desde que o Supremo Tribunal Federal, na metade de 2019, decidiu o Recurso Extraordinário 898.060 e aprovou a Repercussão Geral 622: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante, baseada na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios[2]”, a multiparentalidade passou a ter destaque entre os temas de direito de família.
A família contemporânea é identificada pela diversidade, pela busca do afeto, felicidade e realização pessoal de cada um dos membros da entidade familiar. E isso, gera consequências no direito de filiação, que passa a ter como base o afeto e a convivência.[3]
A filiação é um dado cultural, formado na convivência familiar, assim é possível que alguém, independentemente da sua origem biológica, seja tratado como filho de forma contínua e notória.[4]
A paternidade socioafetiva é a relação entre pai e filho que se constrói pela afetividade, cuidado, carinho e atenção ao longo da convivência familiar. Pelo relacionamento paterno-filial serão formados responsabilidades e referenciais que corresponderão a elementos fundamentais na formação, construção e definição da identidade do indivíduo. Dessa forma, a relação entre pai e filho socioafetivo vai sendo reconhecida entre o grupo familiar e terceiros[5].
A socioafetividade se constrói no dia-a-dia, dentro do núcleo familiar. Assim, o exercício da autoridade daquele que cumpre a função de pai ou mãe, em razão dos laços de afeto, que ocasiona a paternidade socioafetiva.[6]
É muito comum a formação de vínculos socioafetivos nas famílias recompostas, aquelas em que foi rompido um laço e um novo vínculo foi formado com uma outra pessoa. Muitas vezes, um dos membros do casal tem filhos da união anterior, e essas crianças com o novo(a) companheiro(a) passam a coexistir e vão sendo criados laços de afeto que podem gerar uma paternidade/maternidade socioafetiva, quando o “padrasto” ou a “madrasta” desempenha conjuntamente as funções parentais.
Um grande avanço no direito de família brasileiro foi o reconhecimento da multiparentalidade, que é o parentesco constituído por múltiplos pais, simultaneamente de uma filiação biológica e uma socioafetiva, ou seja, a multiparentalidade ocorre quando um filho possui dois pais e/ou duas mães sem exclusão de nenhum deles. Essa foi a situação, acima exposta, admitida pelos Ministros do STJ para ser analisada, quando ingressaram com a segunda demanda requerendo a inclusão no registro de nascimento do pai biológico, juntamente com o pai socioafetivo.
A multiparentalidade surge pela liberdade de constituição de modelos familiares e pelo grande número de famílias recompostas, em que passam a conviver diversas figuras de pais ou mães de forma concomitante, seja em razão de laços biológicos ou socioafetivos.
A multiparentalidade, que é a dupla paternidade ou maternidade, é uma realidade jurídica que passou a ser possível pela dinâmica da vida e pelo entendimento que ser pai ou mãe é uma função exercida. Desta forma, essa categoria jurídica foi autorizada pela força dos fatos e dos costumes em face do direito, sendo a paternidade socioafetiva diferente da paternidade biológica e registral, e pode se somar a ela.[7]
Mas não é qualquer relação afetiva que gera o vínculo de paternidade-filiação, como na situação do padrasto que se limita a proteção do enteado, sem que ele considere a pessoa como filho, com todas as suas consequências[8]. É necessário para existir a situação fática do pai socioafetivo, que o padrasto ainda não reconhecido, dê a qualificação de filho àquele ente familiar.
A multiparentalidade é uma forma de reconhecimento de uma situação jurídica consolidada no tempo, em que na realidade fática mais de uma pessoa exerce o papel de pai ou mãe na vida da criança. O reconhecimento dessa realidade no mundo do direito faz com que ele passe a observar e levar em consideração a verdade real do estado de filiação concomitante de dois pais/mães, sendo um biológico e outro socioafetivo.
A partir da decisão do STF, na Repercussão Geral 622, foi reconhecida expressamente a possibilidade da paternidade socioafetiva e foi autorizado o registro concomitante de mais de um pai e/ou mãe no registro de nascimento, sendo um vínculo de origem biológica e outro formado pela afetividade, não existindo hierarquia entre as formas de paternidade.
Na multiparentalidade coexiste a paternidade biológica e socioafetiva com a mesma intensidade, não existe preferência ou hierarquia entre elas, pois o filho mantém tanto com o “pai de sangue” como com o “pai do afeto” um vínculo forte de paternidade-filiação, para o filho ambos são seus pais igualmente. É preciso ficar claro que “a paternidade, a maternidade, a filiação, qualquer que seja a sua origem, têm a mesma importância e devem receber igual acatamento, respeito e consideração[9]”.
Qualquer reconhecimento de filiação, independente da natureza, gera diversas consequências para os envolvidos. Com a inclusão do pai/mãe socioafetivo no registro de nascimento, o filho socioafetivo passa a ter os mesmos direitos que um filho biológico, relacionado à sucessão, alimentos, guarda, sobrenome, vínculos de parentesco, entre outros.
Com o reconhecimento e registro da multiparentalidade, ou seja, a indicação de dois pais/mães simultaneamente, sendo um de origem biológica e outro socioafetiva, no assento de nascimento do filho, todos os efeitos jurídicos que a paternidade gera será em relação a todos os pais, independentemente de como o laço foi estabelecido. Esse é o entendimento dos Tribunais Superiores e já foi consolidado em diversos enunciados das Jornadas de Direito Civil do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, como nos enunciados 103, 256, 339, 519, 632, entre outros.[10]
Esses entendimentos só solidificam a posição que os filhos socioafetivos, seja em multiparentalidade ou não, têm os mesmos direitos e deveres em igualdade com os demais filhos, e essa igualdade também deve ser estabelecida entre os múltiplos pais, pois todos são pais da mesma forma, não podendo ser diferenciados. Portanto, a partir do reconhecimento da filiação socioafetiva, que atualmente pode ser judicial ou extrajudicial, são produzidos efeitos pessoais e patrimoniais para os envolvidos.
Para finalizar, é importante lembrar que atualmente o reconhecimento da filiação socioafetiva, até mesmo em multiparentalidade, pode ocorrer de forma extrajudicial, diretamente nos Cartórios de Registro Civil, desde que observadas algumas limitações e regras dispostas nos Provimentos nº 63 e 83 do CNJ.
Escrito por Gabriele Bortolan Toazza (OAB/PR 66.187) – Departamento Cível e Comercial de Cascavel
[1]A decisão pode ser encontrada nas notícias do STJ, o número do acórdão não foi divulgado, por ser segredo de justiça. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/03112021-Negativa-anterior-de-registro-do-pai-biologico-nao-impede-nova-acao-para-registro-conjunto-de-vinculos-parentais.aspx
[2]SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, RE 898060, Rel. Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 21/09/2016. Disponível em: http://www.stf.jus.br.
[3]MACHADO, Priscila Matzenbacher Tibes. Multiparentalidade. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RIBEIRO, Gustavo Pereira Leite (Coord.). Manual de Direito das Famílias e das Sucessões. 3.ed. Rio de Janeiro: Processo, 2017. p. 321.
[4]SCHREIBER, Anderson. Manual de Direito Civil Contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 852.
[5]PORTANOVA, Rui. Ações de filiação e paternidade socioafetiva. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2016. p. 19.
[6]PAIANO, Daniela Braga. A Família Atual e as Espécies de Filiação: Da Possibilidade Jurídica da Multiparentalidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017. p. 64.
[7]PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Dicionário de Direito de Família e Sucessões: ilustrado. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 525.
[8]VELOSO, Zeno. Direito Civil – Temas. Belém: ANOREG/PA, 2018. p. 213-214.
[9]VELOSO, Zeno. Direito Civil …, p. 211.
[10]CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL. Jornadas de Direito Civil. Brasília. Disponível em: https://www.cjf.jus.br/cjf/CEJ-Coedi/jornadas-cej.