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24/09/2021

CLÁUSULAS RESTRITIVAS NA SUCESSÃO TESTAMENTÁRIA

Por força de Lei, o direito de propriedade admite determinadas limitações. Exclusivamente no que se refere às limitações impostas pelo interesse privado, tem-se que estas se efetivam por meio das cláusulas restritivas ao direito de propriedade, quais sejam: as cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade.

Desde logo, esclarece-se que: i) a cláusula de inalienabilidade tem por objetivo vedar a alienação de determinado bem; ii) a cláusula de impenhorabilidade impõe condições para impedir que o bem transferido não deixe de pertencer ao patrimônio da pessoa beneficiada, e, por fim; iii) a cláusula de incomunicabilidade impede que os bens doados, herdados ou legados se comuniquem em razão de casamento.

Passa-se a analisar cada uma delas em maiores detalhes para, ao final, demonstrar o atual entendimento jurisprudencial acerca das cláusulas restritivas na sucessão testamentária.

 

1. CLÁUSULA DE INALIENABILIDADE

1.1 CONCEITO

Conforme mencionado anteriormente, a cláusula de inalienabilidade tem o propósito de vedar a alienação de determinado bem. Neste sentido, não se pode vender, doar, gravar, permutar ou dar em pagamento.

Sobre o tema, Sílvio de Salvo Venosa observa que “os bens inalienáveis são indisponíveis. Não podem ser alienados sob qualquer forma, nem a título gratuito nem a título oneroso[1].

Impende destacar que a cláusula de inalienabilidade acarreta cerceamento ao direito da propriedade, em que há a perda do poder de dispor.

Vale registrar que esta cláusula, quando imposta à imóveis, deve ser averbada no Registro de Imóveis competente, consoante preceituam os artigos 128,167, II-11 e 247, todos da Lei 6.015/63 (Lei de Registros Públicos)[2].

No mais breve resumo: a inalienabilidade cria um ônus real sobre a coisa, paralisando a possibilidade de transferência do bem a qual recai sobre o titular do domínio.

1.2 DEMAIS CARACTERÍSTICAS

A inalienabilidade pode ser temporária ou vitalícia. Se temporária, o beneficiário da liberalidade só poderá dispor do bem, após transcorrido o prazo determinado na cláusula. Se vitalícia, o beneficiário do bem gravado não poderá, em regra, dispor do bem até a sua morte.

Cumpre enfatizar, além disso, que o art. 1.911 do Código Civil dispõe que a cláusula de inalienabilidade, imposta aos bens por ato de liberalidade, implica sua impenhorabilidade e incomunicabilidade. Neste mesmo sentido, está a Súmula 49 do Supremo Tribunal Federal[3].

Ademais, em regra, esta cláusula somente poderá ser constituída através de doação ou testamento, sopesado o fato de que ninguém pode tornar inalienável, e por conseguinte, impenhorável, um bem de seu patrimônio, como já advertiu o professor Sílvio Rodrigues[4].

Exclusivamente sobre a finalidade da cláusula de inalienabilidade, destaca Sílvio de Salvo Venosa:

“A imposição de cláusula proibitiva de alienar pelo testador pode vir imbuída de excelentes intenções: receava ele que o herdeiro viesse a dilapidar os bens, dificultando sua própria subsistência ou de sua família; tentava evitar que o sucessor ficasse, por exemplo, privado de um bem para moradia ou trabalho. Como geralmente a cláusula vem acompanhada da restrição da incomunicabilidade, procurava o testador evitar que um casamento desastroso diminuísse o patrimônio do herdeiro. São sem dúvidas razões elevadas que, a priori, só viriam em benefício do herdeiro. Contudo, não bastassem os entraves que o titular de um bem com essa cláusula tem que enfrentar, como sua aposição podia ser imotivada pelo sistema de 1916, poderia o testador valer-se dela como forma de dificultar a utilização da herança, quiçá como meio de vingança ou retaliação, uma vez que não podia privar os herdeiros necessários da legítima.”[5]

Justamente por se tratar de imposição exclusivamente relacionada ao herdeiro necessário, se este vier a falecer, os bens clausulados, por ele recebidos, passarão aos seus sucessores livres e desembaraçados.  

Corroborando com este entendimento, Silvio de Salvo Venosa defende que a interpretação da cláusula de inalienabilidade “deve ser sempre restritiva. Se há um único filho, e este renuncia [a herança], os netos recebem o bem sem o ônus[6].

Além disso, o magistério de Bevilaqua chama atenção ao fato de que, em não havendo menção expressa, na inalienabilidade não se inserem os frutos e rendimentos (Bevilaqua, 1939, v. 6: 188).

Noutro passo, considerando a possibilidade de a cláusula de inalienabilidade ser imposta por motivos contrários à finalidade para a qual foi criada, determina o art. 1.848, do Código Civil, a necessidade de haver justa causa para sua imposição:

Art. 1.848. Salvo se houver justa causa, declarada no testamento, não pode o testador estabelecer cláusula de inalienabilidade, impenhorabilidade, e de incomunicabilidade, sobre os bens da legítima.
§1º Não é permitido ao testador estabelecer a conversão dos bens da legítima em outros de espécie diversa.
§2º Mediante autorização judicial e havendo justa causa, podem ser alienados os bens gravados, convertendo-se o produto em outros bens, que ficarão sub-rogados nos ônus dos primeiros.

Frise-se que a mencionada justa causa deverá ser analisada no caso concreto pelo juiz, uma vez que ela é interpretada pela doutrina como sendo um conceito aberto ou indeterminado.

Sobre a necessidade de haver justa causa, assinala Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery que “o que determina a validade da cláusula não é mais a vontade indiscriminada do testador, mas a existência de justa causa para a restrição imposta voluntariamente pelo testador. Pode ser considerada justa causa a prodigalidade, ou incapacidade por doença mental, que diminuindo o discernimento do herdeiro, torna provável que esse dilapide a herança[7].

Acerca da excepcionalidade da cláusula de inalienabilidade, ressalta Clóvis Bevilaqua:

“A inalienabilidade não pode ser perpetua. Há de ter uma duração limitada. O Código Civil somente a permite temporária ou vitalícia. Os vínculos perpétuos, ou cuja duração se estenda além da vida de uma pessoa são condenados[8]

Por fim, insta mencionar que existe a possibilidade de o proprietário do bem clausulado, desde que haja fundada razão, substituir o gravame por outro bem de sua propriedade. Para tanto, é necessário que este bem possua valor igual ou superior àquele clausulado. Além disso, faz-se necessária a autorização judicial, que deve ser requerida por meio de procedimento especial de jurisdição voluntária, nos moldes dos artigos 719[9] e 725, II[10], do Código de Processo Civil.

 2. CLÁUSULA DE IMPENHORABILIDADE 

A cláusula de impenhorabilidade impõe condições a fim de que o bem transferido não mais saia do patrimônio da pessoa beneficiada, tornando-se assim impenhorável, para credores de qualquer natureza.

Essa cláusula, dependendo da vontade de quem as institui, pode ser vitalícia ou temporária. A impenhorabilidade, genericamente, implica que o bem, recebido por testamento ou por doação, não mais poderá ser penhorado por dívida do novo proprietário.

Para o fim de impenhorabilidade, os princípios são os mesmos da cláusula de inalienabilidade: só pode ser inserida por terceiros, em testamentos e doações, e sua imposição está condicionada a existência de justa causa para tanto.

Além disso, ainda nos mesmos moldes do que foi exposto anteriormente a despeito da inalienabilidade, existe uma possibilidade de se abrir exceção judicial à cláusula de impenhorabilidade naqueles casos em que, ao invés de proteger o herdeiro ou donatário, esta se apresentar como fator de lesividade dos seus interesses, na medida que impossibilita o melhor aproveitamento do patrimônio – inclusive, podendo fato violador da função social da propriedade.

3. CLÁUSULA DE INCOMUNICABILIDADE

A cláusula de incomunicabilidade, como exposto, exclui o bem clausulado da comunhão, permitindo assim que o cônjuge beneficiário tenha direito exclusivo sobre a coisa que herdar, receber em legado ou doação.

É o que estipula o artigo 1.668, no inciso I, do Código Civil:

Art. 1.668. São excluídos da comunhão:
I – os bens doados ou herdados com a cláusula de incomunicabilidade e os sub-rogados em seu lugar;

Nunca é demais ressaltar que, na mesma medida das cláusulas anteriores, ela só pode ser imposta por terceiros, motivados por justa causa.

Observa-se, por fim, que tal cláusula somente tem razão de ser quando o regime matrimonial estipulado entre os cônjuges é o da comunhão universal.

4. DO ATUAL ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL SOBRE O TEMA

 A jurisprudência, em consonância com a posição adotada pela legislação e doutrina, possui entendimento no sentido de anular as cláusulas restritivas, quando inexistente justa causa para tanto – dispensando a necessidade de sub-rogação do bem, inclusive.

Vejamos alguns dos recentes julgados do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA. AÇÃO REVOCATÓRIA DE GRAVAME. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. IMÓVEL FRUTO DE DOAÇÃO COM CLÁUSULA DE IMPENHORABILIDADE E INCOMUNICABILIDADE. PRETENSÃO DE REFORMA. IMPOSSIBILIDADE. GRAVAME INSTITUÍDO HÁ MAIS DE 20 ANOS. ALTERAÇÃO DA SITUAÇÃO FÁTICA. RELATIVIZAÇÃO DA NORMA. PRECEDENTES DO STJ E DESTA CORTE. DONATÁRIOS QUE RESIDEM EM COMARCA E PAÍS DIVERSO DO LOCAL QUE ESTÁ SITUADO O IMÓVEL. POSSIBILIDADE DE LEVANTAMENTO DOS GRAVAMES, SEM NECESSIDADE DE CONVERSÃO EM OUTRO BEM. EXCEPCIONALIDADE. JUSTA CAUSA. RECURSO DESPROVIDO.
(TJPR – 17ª C. Cível – 0002278-03.2020.8.16.0179 – Curitiba – Rel.: JUIZ DE DIREITO SUBSTITUTO EM SEGUNDO GRAU ALEXANDRE KOZECHEN – J. 05.07.2021)

APELAÇÃO CÍVEL. DOAÇÃO DE IMÓVEIS DE ASCENDENTES PARA DESCENDENTES. ADIANTAMENTO DE LEGÍTIMA NOS MOLDES DO ART. 544, CC. CANCELAMENTO DAS CLÁUSULAS DE INCOMUNICABILIDADE, IMPENHORABILIDADE E INALIENABILIDADE. POSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE MOTIVO E JUSTA CAUSA. EXEGESE DO ART. 1.848, CC. PRECEDENTES. SENTENÇA ESCORREITA. RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. VISTOS, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível no qual figuram como apelante Ministério Público do Estado do Paraná, e como apelados Ricardo Ruppell Paraná e Outros.
(TJPR – 18ª C. Cível – 0002142-11.2017.8.16.0179 – Curitiba – Rel.: JUÍZA DE DIREITO SUBSTITUTO EM SEGUNDO GRAU LUCIANE BORTOLETO – J. 17.03.2021)

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE ANULAÇÃO DE CLÁUSULA TESTAMENTÁRIA. INSTITUIÇÃO DE GRAVAME. INALIENABILIDADE, IMPENHORABILIDADE E INCOMUNICABILIDADE ABSOLUTA E VITALÍCIA. EXCEPCIONALIDADE. JUSTA CAUSA. AUSÊNCIA. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.1. As cláusulas restritivas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade, gravadas sobre imóveis havidos por herança, representa a disposição de última vontade do testador, tem a finalidade de resguardar determinados bens contra uma eventual, imprevisível e futura desestabilização do patrimônio da família. 2. Não existindo motivo ponderável para manter as cláusulas restritivas de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade deve ser possibilitado ao autor dispor do patrimônio recebido de forma mais ampla e rentável, utilizando-o da forma que melhor lhe convier. 3. Recurso conhecido e provido.
(TJPR – 11ª C. Cível – 0000596-76.2011.8.16.0163 – Siqueira Campos – Rel.: Desembargador Fábio Haick Dalla Vecchia – J. 30.08.2018)

O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, possui precedentes no mesmo sentido:

RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. DOAÇÃO. HERDEIROS NECESSÁRIOS. ANTECIPAÇÃO DE LEGÍTIMA. CLÁUSULA DE INALIENABILIDADE. INDISPONIBILIZAÇÃO DE BEM IMÓVEL POR TRINTA ANOS. INTERPRETAÇÃO DO ART. 1676 DO CC/16 A LUZ DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE. INCIDÊNCIA DO ART. 2035 E 1848 DO CCB. POSSIBILIDADE DE CANCELAMENTO DA CLÁUSULA DE INALIENABILIDADE APÓS A MORTE DO DOADOR ANTE A AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA PARA A SUA MANUTENÇÃO. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
(STJ – Resp: 1375286 SP 2012/0246977-5, Relator: Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Data de Publicação: DJ 17/09/2014)

Além disso, inúmeros são os entendimentos no sentido de que a cláusula restritiva possui vigência tão somente enquanto viver o herdeiro beneficiário, cuja morte tem o efeito de transferir os bens objetos da restrição livres e desembaraçados aos seus sucessores. Referido entendimento, inclusive, é adotado pelo Superior Tribunal de Justiça:

AGRAVO INTERNO. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO. PENHORA. CLÁUSULA DE INALIENABILIDADE VITALÍCIA. VIGÊNCIA. 1. Conforme estabelece o art. 1.676 do Código Civil de 1916 (1.911 do Código Civil de 2002), a cláusula de inalienabilidade vitalícia tem vigência enquanto viver o beneficiário, cuja morte tem o efeito de transferir os bens objeto da restrição livres e desembaraçados aos seus herdeiros, podendo sobre eles, então, recair penhora. Precedentes. 2. Agravo interno a que se nega provimento.
(STJ – AgInt no AREsp: 1364591 SP 2018/0240028-7, Relator: Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, Data de Julgamento: 28/09/2020, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: 01/10/2020)

5. PARECER FINAL

Diante do conteúdo exposto, conclui-se pela possibilidade de abrir exceção às cláusulas restritivas nas seguintes hipóteses:

1) A substituição do gravame por outro bem de sua propriedade, desde que seja de valor igual ou superior ao do bem a ser substituído. Para tanto, necessária autorização judicial (art. 1911, parágrafo único, do CC). Tal sub-rogação de vínculo deve ser requerida por meio de procedimento especial de jurisdição voluntária, conforme arts. 719 e 725, II, do Código de Processo Civil;

2) A anulação judicial do gravame, por meio da demonstração de ausência de justa causa para tanto, nos moldes do art. 1.848 do Código Civil. Na referida hipótese, o juiz analisará o caso concreto para concluir se existe (ou não) justa causa para manutenção da cláusula restritiva;

3) Por fim, conforme entendimentos doutrinários e jurisprudenciais expostos, o gravame se extinguirá com a morte do herdeiro beneficiário do bem, de modo que será transferido livre e desembaraçado aos próximos herdeiros.

Escrito por João Alci Oliveira Padilha (OAB/PR n° 19.148) e  Laura Cancela da Cruz (acadêmica de Direito)


[1] VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Direito das Sucessões. São Paulo: Atlas, 2003.

[2] Art. 128. À margem dos respectivos registros, serão averbadas quaisquer ocorrências que os alterem, quer em relação às obrigações, quer em atinência às pessoas que nos atos figurarem, inclusive quanto à prorrogação dos prazos.

Art. 167 – No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos.
II – a averbação:
11) das cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade impostas a imóveis, bem como da constituição de fideicomisso;

Art. 247 – Averbar-se-á, também, na matrícula, a declaração de indisponibilidade de bens, na forma prevista na Lei.

[3] Súmula 49/STF. A cláusula de inalienabilidade inclui a incomunicabilidade dos bens.

[4] RODRIGUES, Sílvio. Direito civil: v.7 – Direito das sucessões, São Paulo: Saraiva, 1979.

[5] VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Direito das Sucessões. São Paulo: Atlas, 2003.

[6] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil, v. 5 família e sucessões. 21. São Paulo Atlas 2021 1 recurso online. ISBN 9788597027150.

[7] NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria Andrade. Código Civil Comentado, 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

[8] BEVILAQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil – v. VI., 10. Ed. Rio de Janeiro: Paulo de Azevedo, 1958.

[9] Art. 719. Quando este Código não estabelecer procedimento especial, regem os procedimentos de jurisdição voluntária as disposições constantes desta Seção.

[10] Art. 725. Processar-se-á na forma estabelecida nesta Seção o pedido de: II – sub-rogação;

Escrito por:

João Alci Oliveira Padilha
Advogado - OAB/PR 19.148 break Departamento Cível e Comercial break joao.padilha@marangehlen.adv.br break

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